sábado, 2 de julho de 2011

José Saramago

Deus sem fim


Onde Deus está, perguntou-me um homem de barba espessa e de olhar profundo, eu lhe disse que Deus não está, se estivesse, eu lhe diria, ao que o homem respondeu: -Deus é invisível, mas isso não significa que ele não existe, continuarei a minha procura até o fim. Depois de uns cem metros, um barulho forte se ouviu e o homem que me perguntou sobre Deus acabava de ser atropelado, cheguei até ele e percebi o mesmo olhar profundo de quem insistia em me dizer que, mesmo depois de morto, o fim não havia chegado.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Julio Cortázar

O TEMPO DESMONTADO

O velho relojoeiro, com mais de cinquenta anos de experiência no ramo de conserto de relógios, ao desmontar um relógio deixado na sua loja por um cliente desconhecido, percebeu que não conseguia mais montá-lo.

Ao olhar para os outros relógios, inclusive os de parede, percebeu que todos estavam desmontados. Sem entender o que havia acontecido, tentou montar as dezenas de relógios que estavam na sua relojoaria, mas a tentativa resultou inútil.

Não mais comia, não mais dormia, não voltou mais para a casa onde morava sozinho, ficava dias e noites tentando montar os relógios desmontados.
Não sentia mais fome, sono, cansaço. Chegou um momento que teve uma intuição:-Por um enigma totalmente inexplicável, e impossível de decifrar, ele, o velho relojoeiro, havia desmontado o tempo.

Franz Kafka

O CONVIDADO

Ele recebeu o convite para uma festa em uma velha casa de Praga. No convite estava escrito que a festa ocorreria dali a uma semana, em um sábado à noite, e que o traje exigido seria fraque e cartola.

Como não possuía fraque nem cartola, decidiu juntar as suas economias e alugar ambos em uma loja da cidade. Abriu e reabriu o envelope para ler e compreender que festa seria aquela. Aniversário? Casamento? De quem?

Não possuía amigos, só colegas no escritório de contabilidade em que trabalhava havia mais de vinte anos. Como nunca havia sido convidado antes para uma festa, fez questão de ir.

Ao chegar ao local, foi recebido por um homem de uns 60 anos, vestido também de fraque e cartola. Quando ele olhou fixamente no rosto do homem que o recebeu, teve a nítida impressão de que era o seu pai, do qual só vira um retrato quando criança, ou alguém muito parecido com ele.

Entrou no enorme salão vazio. O homem parecido com o seu pai e também com ele mesmo serviu-lhe champanhe, caviar, presunto parma, tudo do melhor.

O convidado fartou-se e, quando deu por si, estava a caminho de sua casa, sem entender nada, mas feliz por ter sido o único convidado para aquela festa feita para ele, por um motivo que ele ignoraria para sempre.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Jorge Luís Borges

DOIS TIGRES
Dois tigres pousaram na minha cama esta manhã.

Eram seres totalmente diversos dos tigres que conheci nos zoos de Paris, Buenos Aires ou Londres.

Eram tigres imersos numa nuvem que os tornava etéreos cada vez que fixava o meu olhar sobre eles.

Desapareceram depois de alguns segundos, e ainda estou aqui na minha cama esperando mais um acontecimento extraordinário, que pode ser a aparição de um leão de duas cabeças, uma zebra de cinco centímetros de altura ou um hidrofante, cercado por paredes de água tão extensas que podem ter a sua origem em um outro universo, tão distante de mim e, ao mesmo tempo , tão próximo.